O primeiro caso de covid-19 no Amazonas foi confirmado em 13 de março – o Estado foi o 13º do país a identificar um contágio pelo novo coronavírus. Pouco mais de um mês depois, a sua epidemia local é a mais grave do país.
O Amazonas tem a pior taxa de incidência do Brasil: são 521 casos para cada milhão de habitantes, segundo o boletim mais recente do Ministério da Saúde, de 20 de abril.
De acordo com dados de 17 de abril, a taxa no Estado era 2,75 vezes a média nacional. No boletim do dia 20, o Ministério da Saúde não informou a taxa de incidência no Brasil e no Estado.
O Amazonas também tem a pior taxa de mortalidade, com 45 óbitos por cada milhão de habitantes, quase o dobro do registrado nos segundos colocados, Pernambuco e Rio de Janeiro, que têm 24 óbitos por milhão.
Em Manaus, onde estão cerca de 80% dos casos confirmados no Estado até agora, essas taxas são ainda maiores. Houve até agora 762 casos por milhão de habitantes, o quinto pior índice entre as capitais, e 72 mortes por milhão de habitantes, o maior entre todas as capitais.
Foram confirmados até a última terça-feira (21/4) 2.270 casos e 193 mortes – o quarto e quinto maior total do país respectivamente. A taxa de mortalidade do vírus no Amazonas, de 8,5%, também está acima da média nacional, de 6,4%.
A situação se agravou ainda mais porque o Amazonas está perigosamente perto de ter ocupado todos os seus leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) da rede pública, que ficam, todos, em Manaus.
A taxa de ocupação chegou a 95% no início de abril e levou os governos federal e estadual a mobilizar verbas, equipamentos, profissionais e a abrir novos hospitais em regime de emergência para tentar impedir o colapso total do sistema de saúde.
Na terça-feira passada (14), a Prefeitura de Manaus anunciou em nota que, por causa do grande aumento do número de sepultamentos no cemitério público Nossa Senhora Aparecida, decidiu abrir valas comuns para enterrar as vítimas do novo coronavírus.
A gravidade da crise levou o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB), a se reunir na segunda-feira (20/4) com o vice-presidente, Hamilton Mourão, para pedir ajuda ao governo federal para uma situação, que, segundo disse em entrevista à Folha de S. Paulo, deixou de ser de emergência para se tornar um “estado de calamidade”.
Na entrevista, Virgílio criticou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) por ter respondido “não sou coveiro” ao ser questionado sobre o número aceitável de mortes nesta pandemia.
“Não sei se ele serviria para coveiro. Talvez não servisse. Tomara que ele assuma as funções de verdadeiro presidente da República. Uma delas é respeitar os coveiros”, disse Virgílio, que chorou ao falar do assunto, segundo a Folha.
A BBC News Brasil conversou com profissionais de saúde que atuam no Amazonas para entender o que levou situação a se agravar tão rápido ali, e eles apontaram alguns dos motivos que contribuíram para o Estado ter o quadro mais crítico do país nesta pandemia.
Época de chuvas aumenta circulação de vírus e internações por síndromes respiratórias
O primeiro motivo é o clima. Os meses de novembro e abril concentram o maior volume de chuvas no Estado, e isso favorece a proliferação de vírus que causam síndromes respiratórias, explica a imunologista Bárbara Baptista, pós-doutoranda da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Amazonas.
“Na época de chuvas, as pessoas ficam mais em ambientes fechados, com pouca ventilação, respirando o mesmo ar, o que gera um aumento de infecções virais”, diz Baptista.
A temporada de chuvas coincidiu justamente com a época em que o novo coronavírus, descoberto em dezembro na China, começou a se espalhar pelo mundo.
E, neste ano, choveu acima da média, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Em Manaus, foram 441,9 mm em janeiro, bem mais do que os 270 a 300 mm que normalmente chovem neste mês. Em fevereiro, foram mais 232,1 mm, abaixo da média para o mês.
Mas o acumulado de 674 mm em janeiro e fevereiro fez do primeiro bimestre de 2020 o mais chuvoso dos últimos quatro anos. E, em março, voltou a chover mais do que de costume.
A temporada de chuvas aumenta a circulação de vírus que causam problemas respiratórios – como influenza comum, adenovírus e H1N1 -, e eleva o número de pessoas internadas nos hospitais pelas doenças que causam.
O Estado tem um sistema de saúde com capacidade limitada. Até meados de março, havia 533 leitos de UTI nas redes pública e privada, segundo o governo estadual. Isso corresponde a 13 leitos para cada 100 mil habitantes, 40% abaixo da média nacional, de 20 leitos a cada 100 mil habitantes.
Em uma época em que há ainda menos leitos disponíveis por causa de outras doenças, aumenta muito a chance de um hospital lotar com o fluxo de pacientes extra gerado pela pandemia de um vírus altamente contagioso.
Um estudo recente apontou que uma pessoa é capaz de infectar outras 2,79, mas sua rápida disseminação tem levado epidemiologistas a revisar o índice para mais de 3.
“O sistema de saúde da região pode não estar dando conta não só por causa da covid-19, mas por outras doenças que circulam na região nesta época”, afirma Baptista.
A BBC News Brasil pediu uma entrevista à Secretaria de Saúde do Amazonas sobre o aumento do número de casos no Estado, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
População aderiu menos ao isolamento social
Baptista também aponta que muitos amazonenses, em especial em Manaus, não cumpriram devidamente as recomendações de isolamento social.
“O governo começou a fazer campanhas no início de março, mas não houve resposta. A gente via muitas pessoas nos mercados, farmácias, e não se respeitava as regras de distanciamento neste lugares para evitar a disseminação”, diz a pesquisadora.
“Talvez as pessoas tenham pensado que estavam lidando com algo distante, que estava acontecendo nas grandes metrópoles, mas se esqueceram que Manaus tem tudo que estas cidades têm.”
Essa também é a opinião de Guilherme Pivoto, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia no Estado.
“Manaus é a capital financeira da região Norte, com um fluxo grande de pessoas de fora do país, principalmente da América do Norte. Temos voo direto para Miami, por exemplo.”
O médico diz que ele e seus colegas costumam circular bastante pela cidade, porque trabalham em vários hospitais, e a percepção comum é de que havia muito movimento nas ruas com o comércio aberto, mesmo após os primeiros casos serem confirmados.
“Conforme as medidas foram sendo reforçadas, as pessoas foram aos poucos aderindo mais, até mesmo nos bairros periféricos, mas, no meu ponto de vista, tinha mais gente na rua do que deveria”, diz Pivoto.
O monitoramento da adesão ao isolamento social feito por empresas de tecnologia aponta na mesma direção, segundo apurou a BBC News Brasil.
O Google acompanha, com base nos sinais de GPS de celulares, a queda de circulação em estabelecimentos comerciais e de recreação, supermercados e farmácias, parques, estações de transporte público e locais de trabalho, em 26 Estados e no Distrito Federal.
A empresa já divulgou dois relatórios sobre o assunto, ambos feitos depois dos decretos estaduais de isolamento social – no Amazonas, a decisão começou a valer em 23 de março. Os índices destas datas – 29 de março e 5 de abril – foram comparados com a circulação média registrada nas semanas de 3 de janeiro a 6 de fevereiro.
Nos dois levantamentos, a circulação no Amazonas caiu menos do que na média do país em todas as cinco categorias.
Em 29 de março, o Estado teve a menor redução do país no movimento das estações de transporte público, e a sexta menor em comércio e recreação.
Uma semana depois, o Amazonas registrou a segunda menor queda nas estações, atrás só de Goiás, e a nona menor em comércio e recreação.
Por sua vez, a empresa In Loco criou um índice de isolamento social próprio, com base nas informações de 60 milhões de celulares, coletadas desde 1º de março.
Os dados mostram que, na primeira semana após o decreto de isolamento social entrar em vigor no Amazonas, o índice de adesão no Estado foi de 51%, cinco pontos percentuais a menos do que a média brasileira, de 56% – e essa diferença chegou a um pico de 11 pontos percentuais em 25 de março.
O Amazonas ficou naquela semana muito abaixo de algumas das maiores adesões do país, como por exemplo no Ceará e no Rio Grande do Sul (60%), em Goiás (61%), em Santa Catarina (62%) e no Distrito Federal (64%).
O infectologista Bernardino Albuquerque, presidente do comitê de enfrentamento ao coronavírus da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), avalia que faltou, num primeiro momento, uma campanha de comunicação mais eficiente para esclarecer à população a importância de ficar em casa.
“A população não tem o hábito de fazer isso quando tem uma gripe comum. E isso não foi obedecido, principalmente por quem tinha sintomas mais leves, e a doença foi ganhando corpo”, diz o médico.
Barbara Baptista, da Fiocruz, avalia que também pode ter havido falhas na fiscalização do cumprimento do decreto.
“Na última semana, ainda tinha muito comércio não essencial aberto. Se isso acontece a esta altura, alguma coisa está errada, não só por parte dos comerciantes, mas também porque alguém não foi lá e mandou fechar”, diz a imunologista.
A boa notícia notícia é que, na segunda semana após o decreto, a diferença entre o índice do Amazonas e do Brasil caiu de cinco para três pontos percentuais.
E, na terceira semana, o Estado ficou quase dois pontos percentuais acima da média nacional – com 54%, foi a maior média semanal desde o decreto até então.
Com poucos testes, não é possível rastrear casos e saber o tamanho real da epidemia
Bernardino Albuquerque, da Ufam, diz também que a testagem é insuficiente no Estado – um problema comum em todo o país.
“A confirmação de casos foi muito seletiva e demorada, em um velocidade muito menor do que a da propagação do vírus”, afirma o infectologista.
Dados do Ministério da Saúde mostram que, até 16 de abril, 8.072, ou 1,69% dos 476.272 testes laboratoriais para covid-19 distribuídos aos Estados, foram destinados ao Amazonas.
Com muitos casos suspeitos e poucos exames, a testagem em todo o Brasil foi restrita aos casos mais graves.
Além disso, há apenas um centro credenciado no Estado para fazer os exames. O Laboratório Central de Saúde Pública de Manaus era capaz de analisar 80 amostras por dia no final de março, segundo o governo estadual.
“O sistema de vigilância no Estado tem uma capacidade pequena, e ele se esgotou. Está trabalhando com a capacidade máxima”, diz o infectologista Guilherme Pivoto.
De acordo o Ministério da Saúde, o Amazonas já concluiu, até 16 de abril, 4.298 exames de casos suspeitos de covid-19, o décimo maior total entre os Estados.
Mas estão em falta no mercado reagentes usados para identificar o coronavírus em testes laboratoriais, disse a Fundação de Vigilância em Saúde, que é ligada à Secretaria Estadual de Saúde.
Isso gerou um acúmulo de centenas de exames à espera de análise. O tempo para sair o resultado, que há duas semanas era era de 24 a 48 horas, passou para até cinco dias.
Albuquerque explica que isso não permite saber o real tamanho da epidemia do Amazonas nem rastrear todos os casos, o que aumenta as chances do coronavírus se propagar.
Pessoas com sintomas leves ou assintomáticas, que representam em média 80% dos casos, não são identificadas e isoladas. Elas continuam a circular e podem infectar quem faz parte dos grupos de risco, em que a doença tende a ser mais devastadora.
Por isso, Albuquerque alerta: “Estamos entrando em um momento muito difícil, em que a doença está saindo da classe média para as classes menos favorecidas, nas quais as medidas de isolamento são muito mais difíceis de serem aplicadas, porque há mais pessoas vivendo em casas menores. Então, como esse vírus é muito transmissível, a tendência da situação é se agravar ainda mais.”