No dia da consciência negra, conheça a professora Francineia Alves, 48, docente premiada no Prêmio Educar 2022 por projeto que aborda a valorização da cultura afro e indígena no Centro de Educação Infantil 01 (Centrinho), de São Sebastião
Com o cabelo crespo volumoso, um colar grande de cores chamativas e recém-maquiada especialmente para a entrevista, a professora premiada que levou um projeto de educação infantil para o resto do país também é uma mulher que, por vezes, precisa lidar com o cansaço. Ela admite isso. Francineia Alves tem 48 anos e está a três da aposentadoria como funcionária da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF).
Os planos, antes de entender que um propósito maior poderia virar sua vida de cabeça para baixo, eram mais simples e incluíam, é claro, descansar um pouco da correria. Ela não é uma super-mulher, ou melhor, é sim. Como professora, mãe e, como ela mesma afirma, um “corpo político em movimento”, uma das principais fontes de poder é admitir que nem sempre vai dar conta de tudo ao mesmo tempo. Mas está tudo bem.
Francineia é natural de Barras, na Bahia, uma cidade de 51 mil habitantes, segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na época, ela relata, não havia ensino superior no município. Filha de servidores públicos, ela foi ensinada a estudar para ocupar todos os lugares que desejava. Aos 17, no entanto, já sabia que queria muito mais do que o território barrense poderia oferecer.
Talvez seja por isso que a professora fala da mudança de estado como quem mudou de bairro. Parece natural. Era como se ela tivesse se preparado durante toda a vida por esse momento. Quando veio morar com parentes em Brasília, já tinha o diploma do magistério feito em Barras — já poderia dar aula, mas não queria. Ainda assim, prestou concurso e passou. De lá para cá, são 27 anos na educação.
O irmão, porém, discorda. Euller Alves da Silva, 53, no fundo, sempre soube que a irmã iria para o caminho da educação. “Ela era muito leitora, lia até bula de remédio”, relata. A mãe de Francineia, Euller e mais dois irmãos era professora e dava aulas de reforço em casa. “Acho que já estava no DNA”, diz o produtor cultural sobre a irmã.
Reconhecimento
“O pessoal do Correio Braziliense me ligou, eu vou, né? Mas a síndrome da impostora fica aqui na cabeça o tempo todinho”, diz a professora sobre a entrevista. Quando foi pedido que ela indicasse pessoas para falar sobre ela no perfil, entrou em contato e disse: “eles estão fazendo matérias sobre personalidades do DF, porque agora eu sou uma personalidade”. E deu risada.
A docente premiada no Prêmio Educar 2022, pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), ainda tem dificuldades em entender a dimensão e o impacto do trabalho que exerce. O projeto Valorização da Cultura Afro-Brasileira e Indígena, no Centro de Educação Infantil 01 (Centrinho), de São Sebastião, começou quando Francineia estava de licença-maternidade. Ela não participou tanto da fundação, mas, aos poucos, se tornou uma das principais representantes da iniciativa.
A educadora ainda tem dificuldade com as atenções dadas a ela. Palavra de quem viu a professora posar para a câmera com naturalidade: quase não dá para perceber.
Quem também está no projeto desde 2013 e viu Neia se transformar com o tempo e o conhecimento que adquiriu é a também professora Kelen Aparecida, 38. “A Francineia tem muito orgulho do projeto. Como uma pessoa preta, ela também se envolveu e se sentiu mais representada”, afirma.
Francineia agora vai começar uma “nova empreitada”, como ela mesma classifica. A docente premiada passa, a convite do CEERT, a ser articuladora do Prêmio Educar no Centro-Oeste. “Gente, o que esse povo quer comigo? Tipo, me deixa quieta”, brinca.
Um corpo no espaço
A evolução do projeto fez parte também da jornada de Neia para o descobrimento de si mesma. E, por consequência, a descoberta de como outras pessoas iriam enxergar e reagir a uma mulher preta quando toma consciência de si. “É engraçado porque meu pai e minha mãe sempre nos criaram para estar nos espaços que a gente quisesse, e aí que eu fui entender, isso estudando a questão do racismo, que têm pessoas que se incomodam de estar em alguns espaços”, relata.
Em 2014, ela abandonou o alisamento que fazia desde os 12 anos. Os cachinhos comportados e cabelo amarrado da infância também não tiveram vez. O cabelo crespo e volumoso finalmente se revelou. Pela forma como ela ajeita cuidadosamente os cachos enquanto conversa, é possível notar que isso representa muito mais que uma mudança estética.
“Eu percebi a força que assumiu o cabelo crespo. E aí, quando a gente percebe, entra nos espaço e fala: tá bom, já que é isso, eu vou ter coragem e me impor”, assinala. Essa força é também aquela que tenta transmitir para as filhas. Francineia, conta Kelen, se preocupa com que mundo quer deixar para elas. A professora nunca sonhou que as filhas fossem princesas, mas constrói diariamente um caminho para que elas sejam firmes e donas de si. “A Fran é um evento, é uma pessoa que você olha e já sabe o que ela representa”.
Na semana da consciência negra, o colégio em que ela trabalha não vai ter programação especial. Isso porque a temática da diversidade racial é trabalhada o ano inteiro. Até o local escolhido pela docente para a entrevista é um cantinho marcante, a “biblioteca antirracista”, onde os protagonismos negro e indígena aparecem em destaque nas estantes de livros.
Menina bonita do laço de fita
Quando mostra os livros, folheia e conta as histórias, Francineia parece abraçar a criança que há dentro de si. Na época da infância, ou até mesmo quando começou a lecionar, a diversidade na literatura infantil era muito menor.
Durante a conversa, ela chega a pegar o livro Menina bonita do laço de fita, lançado por Ana Maria Machado em 1986. “Era o único livro infantil que a gente tinha na época”, narra. “Ele fala da beleza, mostra uma menina preta vivendo normal”.
Ao falar das primeiras experiências como educadora, uma outra memória é desbloqueada. Em 1998, quando Francineia estreava na docência em uma escola em Brazlândia, começava a dar os primeiros passos para uma educação antirracista. Na época, ela levava exemplares da revista Raça, veículo que representa a cultura afro-brasileira, para fazer recortes e colagens.
A ideia era mostrar pessoas negras na cena cultural, escritores, atores, músicos. “Tinha também um grupo chamado Cadernos Negros. Eles faziam contos, até hoje eles fazem. Eu levava e lia para eles”.
Ao longo do tempo, o mundo, o conhecimento e a forma de educar se transformam. Kelen Aparecida, que está na jornada do projeto junto com Francineia, conta que os erros foram vários, mas os aprendizados também. “A Fran era sempre uma das mais preocupadas”, conta. “Ela é do tipo que levanta o astral da equipe quando erramos, mas que também aquilo que sempre aponta aquilo que está errado, ela é firme no que ela acredita”.
Para o irmão, Euller, ela ainda é a mesma menina que lia e contava histórias na infância. Para o mais velho, ela é uma jovem cheia de sonhos e que ainda está começando a descobrir os propósitos, embora as conquistas sejam de gente grande. “Ela leva para a escola quem ela é, e as crianças merecem saber quem são e de onde vieram”.
“Passa rápido. É bom, apesar de tudo, é bom”, Francineia conta. E emociona-se ao lembrar do início da carreira. É um choro de alegria de quem aprendeu e quer continuar aprendendo com esse caminho. “Lembro que, no primeiro dia, a porteira abriu a porta e me deu um sorriso tão lindo. Ela perguntou ‘você é professora nova?’ e eu falei ‘sou’, ela disse ‘seja muito bem-vinda’. Isso me acalentou durante anos, esse bem-vindo dela foi da profissão e de tudo”, finaliza.
Fonte: Correio Braziliense
Foto: Divulgação